por homens melhores

Histórias de renascimento

26-03-2011 13:35

 

Fazenda Esperança: histórias de renascimento

ZH acompanhou durante 21 dias a luta contra o flagelo das drogas

 
Nilson Mariano  |  nilson.mariano@zerohora.com.br

 

Um dos orgulhos do responsável pela Fazenda da Esperança de Casca, Ari Augusto Cortez, 29 anos, é aumentar a lista de ex-internos que venceram o crack.

Diante dos que duvidam da possibilidade de cura, Cortez empilha nomes dos que recuperaram a dignidade.

Um deles é Luiz Felipe Bordin, 21 anos, de Erechim, que auxilia o pai numa revenda de carros. A partir dos 13 anos, ele usou maconha, depois cocaína e álcool. Experimentou o crack em Passo Fundo, durante uma balada de jovens, aos 16 anos. Então, foi tragado pelo sugadouro que devora os dependentes: furtou da família, perdeu o emprego, transformou-se num fiapo, foi expulso de casa.

Luiz Felipe tratou-se por 13 meses na Fazenda da Esperança. Aos 18 anos, abandonou o crack. Qual a receita do milagre? Simplesmente pôs um fim, e pronto. Hoje, estufa o peito para garantir:

— O crack não me faz falta.

Um empresário e universitário de Porto Alegre, 26 anos, que prefere não se identificar, também saiu da Fazenda da Esperança com a carta de alforria. Ele chegava a se hospedar nas bocas de tráfico das vilas, fumando a pedra em ambientes sórdidos até para ratazanas — fracamente iluminados por velas, o chão forrado de guimbas. Quando findava o dinheiro, entregava o relógio, o celular, o tênis, também o som e o estepe do carro para o traficante. Voltava para casa de madrugada, encontrava a mãe no corredor, em pânico, os olhos cravados no teto.

— Os familiares tentam ajudar, heroicamente, mas ficam dependentes também — avalia.

Ele consumiu crack pela última vez em 4 de agosto de 2005 — data que considera o segundo nascimento. No dia seguinte, entrou na Fazenda da Esperança com aparência de “cabide”, as roupas folgadas devido à magreza. No início, rebelou-se, telefonou à família pedindo para voltar. Certa vez, enquanto carregava pedras numa obra, reclamou que não era escravo. Então, ouviu um argumento que o fez refletir:

— É, mas tu carregava uma TV nas costas, até a boca-de-fumo, para comprar a pedra...

Ao deixar a fortaleza, recuperado, reorientou o estilo de vida: dedica-se à família, é pai de uma menina, preza a honestidade, assume responsabilidades e cortou a boemia. Eventualmente, haveria o temor das tentações do crack? A resposta é firme:

— Tenho claro que, se vacilar, o tombo pode ser grande, e as conseqüências, fatais... O que me faz forte é a humildade.

EX-USUÁRIOS SE DEDICAM A AUXILIAR DEPENDENTES

Quem se livrou do crack, como Luís Henrique Ferreira Fonseca, o Kike, 25 anos, resolveu ajudar a Fazenda da Esperança. Por ter submergido nos abissais da droga, é um dos que melhor entende as necessidades dos internos.

Experiência e sofrimento não lhe faltam. A partir dos 14 anos, Kike provou todas as drogas com as quais deparou — maconha, cocaína, ecstasy, LSD, lança-perfume e, o mais temível, o crack. Admite que era uma dinamite de problemas: integrava gangue de bairro, traficava para se auto-abastecer e lucrar, gostava de arrumar confusão:

— Era revoltado, briguento, boca dura...

Em 13 de fevereiro de 2004, ingressou na Fazenda da Esperança. No início, insurgiu-se: achava “um saco” rezar o terço, reclamava da comida empaçocada, das regras, desconfiava das gentilezas.

— Com o tempo, vi que os outros estavam mudando, estavam felizes...

Contrariando as expectativas, Kike cumpriu os 12 meses de abstinência e regressou a Curitiba, onde morava. Recomeçou a faculdade, trabalhou numa academia de ginástica, virou triatleta. Tudo ia bem, sem drogas, mas um vazio lhe corroía. Então, aceitou ser um dos padrinhos (assistente do responsável) na Fazenda da Esperança. Agora, é um paladino contra o crack.

A conversão do ex-pistoleiro 

O interno de 34 anos esmigalha coquinhos com uma pedra, acocorado no chão da enorme gaiola, para extrair do caroço um vermezinho apreciado pelos dois sagüis que saltitam ao redor. Despedaça os frutos com metódica paciência, alimentando os pequenos primatas que se penduram nas suas mãos e escalam seus ombros, ávidos pelo banquete de larvas.

— Gosto de fazer isso, esses bichinhos me acalmam — diz ele.

Mas já houve tempo em que a tarefa foi arrebentar cabeças humanas a tiros ou pauladas. Pistoleiro de um traficante de drogas em Porto Alegre, sua função era matar os que atrapalhavam os negócios do patrão. Eram como vermes a serem eliminados.

— Pessoas que não prestavam... — lembra, sem interromper o esmagamento dos coquinhos no gaiolão que fica no pátio da Fazenda da Esperança.

A recuperação desse interno, que não pode ser identificado, demonstra que a entidade está libertando do crack até mesmo quem se engolfou na violência. Ele assaltou, puxou cadeia e foi xerife da implacável lei do tráfico com sua pistola automática calibre .380.

A serviço do traficante, foi impiedoso. As execuções começaram em 1997, quando cinco jovens arrombaram o local onde eram guardadas drogas, crack, armas e dinheiro, na vila da Capital. Prejuízo: R$ 25 mil. Pena: pagar com juros ou morrer.

O primeiro dos ladrões foi apanhado no corredor de um conjunto habitacional. O amigo dos sagüis o amarrou na posição do frango (tipo pau-de-arara), com as pernas dobradas, os joelhos pressionando a barriga, as mãos para trás, e o surrou com a fivela do cinto, na região dos genitais, onde mais dói. Depois de obter a confissão do paradeiro dos outros, eliminou-o com um tiro. O corpo foi jogado num valão. Os demais tiveram o mesmo fim.

CURRÍCULO DE MORTES TROCADO POR DEVOÇÃO À BÍBLIA

Como pistoleiro, a missão era não tolerar “chinelagens” no bairro. Pequenos larápios que roubam mulheres na parada do ônibus, furtam roupa de varal, assaltam o armazém e surrupiam o botijão de gás da faxineira, com o propósito de obter dinheiro para comprar drogas, são chamarizes da polícia. Na primeira vez, ele avisava o faltoso:

— Ô, meu, tu tá chineleando no bairro. Se precisa de droga, pode abrir uma conta...

Se o ladrãozinho insistisse, a fissura da droga se sobrepondo ao medo, vinha a segunda advertência: o espancamento até desfalecer. Na terceira falta, não havia clemência. O infrator era capturado na rua, aos chutes e bofetadas, à luz do dia, na frente dos moradores, para escarmento público. Levado aos fundos da vila, sofria uns tiros nas pernas e nos pés (antes de morrer), se fosse dos mais cabeçudos. Ele recorda que alguns imploravam misericórdia.

— Pelo amor de Deus, não me matem.

— Mas te avisamos... — sentenciava.

Em abril, ele cansou de matar, vomitar cocaína e se empanturrar de crack. Jogou a pistola fora, entrou na Fazenda da Esperança, hoje é um dos primeiros a empunhar a enxada para a lida na horta. Antes de dormir, o dedo que apertava o gatilho escolhe, aleatoriamente, algum trecho da Bíblia para meditação. No silêncio da noite, murmura uma Ave-Maria e um Pai-Nosso. E se penitencia dos pecados.   

Fonte:  https://zerohora.clicrbs.com.br

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