por homens melhores

Meu Mundo | Série Meninos do Crack

25-09-2011 17:13

 

 

Meu Mundo | Série Meninos do Crack

 

 

Comunicação Portal Social

 

Na sequência da série Meninos do Crack, conheça a história de Henrique. Ele tem dezoito anos, vem de uma família com nove filhos e convive com a droga desde criança.


Meu mundo

Ele entrava em casa como um maluco, sentava no sofá, pegava uma latinha de refrigerante, colocava a droga, acendia e fumava. Ali mesmo, sem pudor algum. Dentro da sua própria casa, junto dos seus filhos e da sua esposa. Meu pai fumava pedra.

Nem sabia o que era direito. Mas eu cresci, fui para o mundo e descobri que meu pai era um viciado em crack. Parece assustador, mas para mim não foi. Parece que já esperava por tudo aquilo. Eu nem pensava para não sofrer. Passei a me esconder dentro de mim mesmo, como um caracol que se esconde em sua casca quando se tem decepções. Permaneço assim: fugindo, calado, me drogando, sem dialogar e sem, ao menos, me questionar. Preso no meu mundo, só meu. Um mundo onde ninguém penetra, onde ninguém se preocupa com quem sou ou como vivo. Talvez nem eu mesmo.

Para mim, a vida parece não ter nada a oferecer. Saí de casa porque não suporto ver minha mãe bebendo e meus nove irmãos passando necessidades. Prossigo no meu caminho, sem rumo. Caminho vagamente, pelas ruas, olho as vitrines e admiro as roupas que nunca tive. Muitas vezes, sento no banco da praça e observo a multidão. Pessoas que vêm e que vão para seus lares, que buscam seus filhos na escola ou que vão para o trabalho. Me fecho, no meu mundinho, e me pergunto: “Para onde eu vou? Qual é meu caminho? Em busca do que ou de quem eu estou?”.

Minha família está no mesmo local onde nasci, mas para lá não volto. Não me sinto bem, em uma casa onde tem muitas brigas, discussões e tristezas. Fico pela rua, onde aprendi tudo muito cedo. Hoje, me olho no espelho e me sinto um velho, com dezoito anos. Vivi tanta coisa que parece que tenho quarenta.

Outro dia, enquanto eu estava cuidando uns carros para conseguir uma graninha, vi um homem morrer na minha frente. Aglomerou-se um monte de gente. Eu só olhei. Comentavam que tinha morrido do coração. Eu o conhecia das ruas. Quando a ambulância o levou, vi que tinha deixado o cachimbo. Morreu do quê? Acho que de tanto fumar. Ele estava dando um estouro, aí, foi. Cachimbo do lado. Estourou a veia do pescoço dele: cemitério.

A vida é assim, ou sou eu que sempre vi ela dessa forma trágica e sem sentido. Tudo parece não ter sentido. Sou filho do mundo, quem me criou foi ele. Gosto da rua porque posso fazer o que quiser, ninguém me manda. Sem segurança, eu aprendi a viver e a me defender muito cedo. Junto com isso, conheci as drogas e o pior: o crack.

Nada de sonhos para mim. Viciado em crack e sozinho no mundo. É assim que me sinto, ninguém se importa. Já trabalhei de servente de pedreiro, antes de começar no crack. Eu não passei a minha vida roubando e estourando lojas. Sinto uma tristeza. O meu mundo é estranho, sem lar. Aonde eu vou tem gente se drogando. Vou ver minha mãe, tem uma boca do lado da casa dela, ai só vejo pedra na minha frente.

Elas estão em todos os lugares, mesmo que eu fuja. Elas vão estar sempre comigo, aonde quer que eu vá. Tudo faz com que as pedras fiquem no meu caminho.

Queria me internar, mas é difícil. Não tenho acesso a nada, não tenho dinheiro e nem apoio. Então, vai passando o tempo.

Acordo em um ambiente onde todos se drogam. Somos em seis, às vezes mais. Ficamos em uma casa onde não tem nada. Às vezes, só fico observando: um que briga com o outro por causa de um pega, o outro que se queixa de fome e o outro que sai correndo roubar. Me tranco no meu mundo e não falo nada. Nem penso muito, fico na minha. Nada vai mudar. Vou fazer o quê? Não tenho saída, nem expectativas e nem ninguém para contar. Sempre foi assim, acho que desde que eu nasci. Não tive amor, nem carinho de mãe. Como ela tem mais nove filhos, temos que nos virar. A vida me ensinou que tenho que ir atrás. Se eu quero alguma coisa, tenho que ir sozinho.

Fiquei feliz hoje. Depois de muito tempo, eu sorri. Encontrei uns bichos de pelúcia em um lixo, ai cada criança que passava por perto de mim eu dava um bichinho. As crianças ficavam felizes e eu também. Eles estão sujos, mas dá para brincar. Eu queria que alguém também tivesse me dado algo, mas isso não ocorreu.

Tenho um metro e sessenta e sete centímetros e peso quarenta e cinco quilos. As pedras estão acabando comigo. Não tenho esperanças de viver por muito tempo.


Este texto faz parte do livro Meninos do Crack, da jornalista Ana Paula Nonnemacher.

https://www.clicrbs.com.br

Procurar no site